A coluna do Ancelmo Gois no sábado passado trouxe a foto de uma gata vira-lata encurralada entre os prédios e um paredão rochoso lá nas redondezas da Fonte da Saudade. A bichana não conseguia sair dali e os moradores dos apartamentos dos fundos da área, consternados, jogavam ração para ela. Água, só da chuva. A própria foto havia sido mandada por um leitor que inúmeras vezes já havia ligado para o Corpo de Bombeiros pedindo que a resgatasse.
Na segunda-feira seguinte, a coluna publicou a foto do resgate da gata. No próprio sábado, pela manhã, o solícito Corpo de Bombeiros foi lá salvá-la. A gata foi adotada por um dos moradores dos prédios. Outra meia-dúzia também havia se prontificado a fazer o mesmo.
Agora, alguns podem me achar demagógico, hipócrita, ridículo ou qualquer outra coisa, mas eu vivo me perguntando por que essa comoção por causa de um gato quando tantos outros da nossa própria espécie passam por situações piores e não há uma reação proporcional? É, sim, estou falando dos miseráveis, das crianças na rua, da situação na África. E também estou me incluindo, comparando-me, aos moradores da Fonte da Saudade, já que não faço nada além de viver minha vidinha e abrigar dois cachorros.
Por que a foto de uma criança abandonada não gera a mesma comoção e a mesma (re)ação? Por que ignoramos os miseráveis que vemos todos os dias nas ruas e nos apiedamos de cachorros esfarrapados? Até comida damos a esses últimos! Eu não sei, mas acho que as respostas a essas perguntas são tão simples... "Uma verdade incoveniente", por assim dizer. Bem sei que no dia em que não tivermos mais empatia com animais, a situação estará ainda pior. Entretanto, não é um contra-senso não ter compaixão pela própria espécie?
Minha mãe tem distúrbio bipolar. Em uma de suas crises de mania, ela levou lá para casa uma senhora, que estava largada na rua. Sob todos os protestos, inclusive meus. Deu-lhe banho, roupa, comida e a pôs para dormir em sua cama. Disse que não a tiraria de casa até que a ajudasse a encontrar sua filha, que era iadmissível deixar uma pessoa em uma situação tão degradante quanto a que ela se encontrava. "Parecia um verme", ela disse. Penso que a senhora morava na rua já há algum tempo, pois falava pouco, era difícil de entender e tinha umas reações atípicas.
Ela passou um fim-de-semana lá em casa. Na segunda-feira, convencida por todos, após muito esforço, minha mãe concordou em encaminhá-la a um dos abrigos da prefeitura. Deixamo-a lá (esqueci seu nome), onde teria cinco refeições por dia. Não tivemos mais notícias suas.
Foi uma experiência bastante desgastante. Alguns dos argumentos contra a atitude de minha mãe eram bastante lógicos, afinal era uma pessoa estranha dentro de casa. Ela mesma, em condições normais, não tomaria tal atitude. Mas eu não conseguia deixar de me lembrar daqueles filmes e livros que mostram que o único que ainda tem algum resquício de razão é justamente aquele julgado como louco.